Apagamento cultural e adoecimento nas comunidades

Apagamento cultural e adoecimento nas comunidades

Por Dra. Bettina Maciel
@bettina.maciell

À primeira vista pode parecer que uma coisa tem nada a ver com a outra. Olhando mais de perto a diversidade étnica do Brasil, com algo de sensibilidade conseguimos perceber nas tradições populares, a nota do patrimônio imaterial e espiritual, conteúdo passível de preservação do esquecimento. Compreender essa coroa cultural como cravejada de diversas jóias: cantigas, rezos, ritualísticas, dividades, instrumentos ritualísticos, banhos, poções de cura e ervas benfazejas, nos impõe o reconhecimento de que a subtração de qualquer das jóias faz com que a coroa deixe de ser coroa: foi vulnerada a estrutura cultural de um povo. Por via de consequência, essa quebra da inteireza cultural, trará influências nefastas ao coletivo, pela perda também de uma identidade una e de saberes e práticas ancestrais.

Para estabelecer um fio tênue de ligação, tomemos o exemplo da canábis. Precisamos recordar que ela sofreu proibição por conta de um projeto de república brasileira, eugenista e racista. Com a saída da monarquia, o foco do poder punitivista se voltou à proteção do “corpo social”, justificativa para segregar, excluir, eliminar os indesejados sociais. Criminalizar as atividades de origem africana foi então a maior arma de opressão estabelecida nesse sistema contra a nova classe de negros libertos. A crescente perseguição à planta e a repressão às religiões de matriz africana se misturam e se explicam ao mesmo tempo. Como nos reconta Luísa Saad, a nominação das plantas tem significado importante na cultura religiosa de Àfrica. Além de conter informações relacionadas à sua utilização, serve para esclarecer aspectos singulares relacionados ao seu emprego. Chamar a planta pelo seu nome adequado significa garantir o propósito ao qual ela se destina.

Nessa nova visão distorcida, as práticas religiosas do povo negro eram consideradas inconciliáveis com a ciência e com a religião cristã: feiticeiros, curandeiros, charlatões e exploradores da fé pública impediriam a sociedade de ser saudável e disciplinada. Assim, era preciso separar juridicamente o que era “religião”(a ser protegida legalmente), do que configurava como magia (a ser combatida). Termos como “macumba”, “magia negra” e “feitiço” diziam diretamente respeito às práticas negras e à ameaça de desordem pública. A repressão ao candomblé se deu com base na sua identificação/confusão proposital, com as práticas de feitiçaria e de falsa medicina, denominadas práticas fetichistas.

Se por um lado os curandeiros eram perseguidos pela medicina, pois lhes faltava diploma além de praticarem a cura através das plantas, por outro, o estado punitivista condenava o uso da maconha tanto como remédio quanto como elemento de tradição negra. O código penal de 1890 perseguiu a cultura preta como samba, candomblé, a capoeira e não deixou de fora da lista de exclusão, o conhecimento fitoterápico africano. A norma proibia atuação ilegal da medicina e da prática de magia e a função de curandeiro foi extinta. A partir de então, qualquer prescrição de substância natural de função curativa só poderia ser feita por um profissional habilitado na área da saúde.

A sabedoria milenar sobre o uso das plantas para tratar diversas doenças que os pais e mães de santo detinham, era agora, por quem não valorizava e temia tais conhecimentos, taxada de feitiçaria. Dentre essas plantas de culto, havia uma firme intenção de proibir especificamente a cannabis. Desta forma a sociedade justificava a repressão do candomblé e outras expressões afro brasileiras de religiosidade, com o alegado combate à falsa medicina feita por curandeiros. Por fim, o Decreto 20.930 de 1932 agregou a canábis junto da cocaína e do ópio no grupo das substâncias tóxicas a serem perseguidas conforme indicação do Departamento Nacional de Saúde.

Não nos sobra espaço para maiores considerações. A partir das reflexões apresentadas, que cada um retire suas proprias conclusões. Do lado de cá, vejo a história se repetindo e se perdendo nas discussões jurídico cientificas sobre uma planta que deveria sem demora voltar pro jardim das famílias, das comunidades e das praças. O direito à livre expressão das religiosidades, aberta ao diálogo intercultural, tradicional, medicinal e ritualístico, é ponto de equilíbrio para exercermos a integração das cosmovisões. Estamos doentes de humanidade e o reino vegetal tem a cura.